segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Suíte Vidas Secas

Suíte Vidas Secas

A Graciliano Ramos

Fabiano

As alpercatas batiam no chão seco da caatinga.
Abaixou-se,
bebeu da água que minava da lama.
Comeu o papagaio por ele não saber falar nada.
Fabiano também não sabia.
Necessidade.
Matou a cachorra-irmã por ela estar doente.
Necessidade.
Necessidade de ser um fabiano, retirante mundano, que coça a barba e acende um cigarro de palha para comemorar a descoberta de um abrigo.
Vaqueiro, profissão do pai, do avô, dos filhos.
Filhos, falta de paciência.
Ergue a voz, cadeia.
Tenta falar difícil, cadeia.
Ia matar, não matou.
Abaixou a cabeça.
Necessidade.
Nasceu pra ser submisso.
E andar caminhando por aí.
Sendo bicho por aí.
Eis o seu maior motivo de orgulho.


Sinha Vitória

Passos espertos cortam o sertão.
Mãos frias e ásperas carregam filhos, dores, papagaio que já não existe mais, saudades, medos, inseguranças: malas da vida.
Os dedos dos pés abertos como um papagaio.
O medo da seca toma conta do seu coração.
Vai ver o jantar.
Ajuda o marido nas contas da casa.
Da janela, já comida pelo tempo, observa os filhos que brincam construindo mundos de barro que secam ao sol.
Sorri.
A seca não vai voltar.
Reclama do ronco de Fabiano.
Recolhe os meninos, a noite já vem.
Janta e deita na cama de varas.
E segue sonhando acordada, em um dia de primavera,
poder dormir numa cama de lastro de couro,
tal como a do seu Tomás da bolandeira.

O menino mais novo

E o vago desejo criou raízes na pobre cabeça.
Queria impressionar o irmão e a cachorra.
Fabiano, um ídolo.
Quem dera o menino fosse como ele.
Queria ser vaqueiro.
Só.
Via no pai a figura do homem mais corajoso do mundo.
Inventou de subir no bode para imitá-lo.
Coitado!
Em instantes estava jogado no chão.
E do chão, erguendo a pobre cabeça,
criou um mundo azul em meio às nuvens,
onde uma nuvem grande parecia Fabiano.
Ídolo.
Pai.
Vaqueiro.
Queria, um dia, ser como ele!


O menino mais velho

Maldita boca de sinha Terta.
Que tinha de falar em inferno?
A palavra maldita fez morada em sua cabeça.
Curioso que só, foi à mãe.
- O que é inferno?
- Ora moleque, diabo, chifres, tridentes, fogo, coisa ruim, seca.
Cabisbaixo, foi ao pai.
- Arreda, excomungado. Não tenho tempo.
Triste, contou histórias fantásticas para Baleia, que tudo ouvia com grande admiração.
Mas o que era inferno, meu Deus?
Era bom?
Era mal?
Inferno seria o chiqueiro? O curral? A serra?
Não.
Por ironia do destino, o inferno que o menino procurava já estava, há tempos, no seu simples dia-a-dia.


Baleia

Sentiu que já era velha demais.
O corpo cansado era comido por mosquitos.
Fabiano decidiu matá-la.
Como sentindo o cheiro da morte,
buscou forças da alma ainda boa,
para desviar-se dele.
Sinha Vitória tapou os ouvidos dos filhos que choravam.
De repente, um tiro.
Numa sequência ilógica,
seus pensamentos e lembranças se misturaram com a chegada da morte.
A pedra quente perto do fogão que a esquentava de noite.
Os meninos.
A mão do pobre irmão Fabiano.
Sinha Vitória.
As vacas que corriam soltas.
Pega, pega, pega!
Um preá. Dois preás.

Um mundo de preás, gordos e enormes.

Um comentário: