sábado, 16 de janeiro de 2016

Inversão capitalista


Aquele dia estava diferente, perplexo. O sol acabara de nascer e já bocejava com vontade de se pôr novamente. As cortinas dos apartamentos estavam fechadas, e, como que por encanto, não se ouvia barulho algum na grande cidade. As lojas não abriram e o correio não passou. A cigana não armou sua barraca na Praça Carlos Gomes para ler a mão e inventar lorotas aos namorados, que, por sua vez, também não estavam nas ruas. Não havia ninguém, nem uma só alma humana a perambular pelos becos, pelas vielas e pelas avenidas.

Não obstante, o mundo continuava a girar e aqueles seres denominados ‘coisas’, tal como a caixa de bombons, a geladeira, o microondas, o patê de atum, o saco de lixo, o celular, entre tantos outros que, desde a vossa criação tinham sido humilhados e descartados aos urubus do aterro sanitário quando não mais satisfaziam o desejo de seus donos, agora possuíam o poder sobre o planeta. E num relance, foram às compras, pois precisavam de algumas ‘coisas’...

A caixa de bombons, após o banho de maquiagem e a persistente demora em escolher um vestido decente para ir ao “Human’s Shop”, lá chegando, pôs-se a caminhar lentamente pelas prateleiras lotadas de seres humanos, polidos, limpos, e prontos para serem comprados por uma alma piedosa. Andou pelo corredor dos loiros, porém ficou encantada com a simpatia do olhar lançado pelo japonês e, não tendo muitas economias, retirou-o cuidadosamente da prateleira, o pôs numa sacola biodegradável e foi ao caixa. De volta à sua casa, ela guardou o japonês no armário. Iria conservá-lo para que não estragasse. Depois que o atual jardineiro morresse, ele poderia servir como tal ou como qualquer outra profissão do gênero.

E assim se fez. Cada objeto, no seu tempo e por sua vontade, escolhera um tipo de ser humano para realizar as tarefas à que foram escolhidos. A geladeira usou o afro-descendente como governante da sua mansão em Alfaville. O microondas escolheu a loira, porém ao tirá-la da prateleira, aquela veio ao chão, tombo este que causaria grandes problemas na hora do pagamento. O patê de atum foi esperto, precisava de um criado-mudo, no sentido literal da palavra, e, sem mais dúvidas, levou o anão. Já o nosso amigo saco de lixo foi inteligente e decidido, entrou no mercado sabendo o que queria. Dono de muitas propriedades, ele logo escolheu alguém que pudesse lhe ajudar a gerenciar os negócios, portanto o executivo bateu o paletó já empoeirado de tanto esperar, e, abrindo um sorriso, foi com seu novo dono. O celular ficou com uma escrava. Quase um paradoxo, não é? Como pode um ser tão novo quanto o celular poder possuir um escrava, visto que há mais de cem anos aboliu-se a escravidão? Ora, fico feliz em sua esperança de nisso acreditar, porém lhe informo, com grande dor no coração, que ela é ainda sim, uma realidade, e precisa ser comentada, discutida, e encerrada.

Os objetos comprados, de início, não reclamaram da vida nova. Foram bem acolhidos, cada um desempenhando o papel que lhes fora destinado. Porém como nem tudo na vida acaba em festa, o mundo girou, e girou, e girou, e assim passaram-se semanas, meses, e os donos, ao lerem o prazo de validade de seus produtos comprados naquela fria tarde de inverno, viram-se obrigados a jogá-los fora, para servirem talvez, aos urubus do aterro sanitário.

E assim, cumprindo suas tão infelizes trajetórias no planeta azul, os homens e mulheres viram-se em meio a outros de mesma espécie que também tiveram seus prazos de validade vencidos. Às vezes é preciso ser ‘coisa’ para dar mais valor às ‘coisas’.




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