Aquele dia estava diferente,
perplexo. O sol acabara de nascer e já bocejava com vontade de se pôr
novamente. As cortinas dos apartamentos estavam fechadas, e, como que por
encanto, não se ouvia barulho algum na grande cidade. As lojas não abriram e o
correio não passou. A cigana não armou sua barraca na Praça Carlos Gomes para
ler a mão e inventar lorotas aos namorados, que, por sua vez, também não
estavam nas ruas. Não havia ninguém, nem uma só alma humana a perambular pelos
becos, pelas vielas e pelas avenidas.
Não obstante, o mundo continuava a
girar e aqueles seres denominados ‘coisas’, tal como a caixa de bombons, a
geladeira, o microondas, o patê de atum, o saco de lixo, o celular, entre
tantos outros que, desde a vossa criação tinham sido humilhados e descartados
aos urubus do aterro sanitário quando não mais satisfaziam o desejo de seus
donos, agora possuíam o poder sobre o planeta. E num relance, foram às compras,
pois precisavam de algumas ‘coisas’...
A caixa de bombons, após o banho de
maquiagem e a persistente demora em escolher um vestido decente para ir ao “Human’s
Shop”, lá chegando, pôs-se a caminhar lentamente pelas prateleiras lotadas de
seres humanos, polidos, limpos, e prontos para serem comprados por uma alma
piedosa. Andou pelo corredor dos loiros, porém ficou encantada com a simpatia
do olhar lançado pelo japonês e, não tendo muitas economias, retirou-o
cuidadosamente da prateleira, o pôs numa sacola biodegradável e foi ao caixa.
De volta à sua casa, ela guardou o japonês no armário. Iria conservá-lo para
que não estragasse. Depois que o atual jardineiro morresse, ele poderia servir
como tal ou como qualquer outra profissão do gênero.
E assim se fez. Cada objeto, no seu
tempo e por sua vontade, escolhera um tipo de ser humano para realizar as
tarefas à que foram escolhidos. A geladeira usou o afro-descendente como
governante da sua mansão em Alfaville. O microondas escolheu a loira, porém ao
tirá-la da prateleira, aquela veio ao chão, tombo este que causaria grandes
problemas na hora do pagamento. O patê de atum foi esperto, precisava de um
criado-mudo, no sentido literal da palavra, e, sem mais dúvidas, levou o anão.
Já o nosso amigo saco de lixo foi inteligente e decidido, entrou no mercado
sabendo o que queria. Dono de muitas propriedades, ele logo escolheu alguém que
pudesse lhe ajudar a gerenciar os negócios, portanto o executivo bateu o paletó
já empoeirado de tanto esperar, e, abrindo um sorriso, foi com seu novo dono. O
celular ficou com uma escrava. Quase um paradoxo, não é? Como pode um ser tão
novo quanto o celular poder possuir um escrava, visto que há mais de cem anos
aboliu-se a escravidão? Ora, fico feliz em sua esperança de nisso acreditar,
porém lhe informo, com grande dor no coração, que ela é ainda sim, uma
realidade, e precisa ser comentada, discutida, e encerrada.
Os objetos comprados, de início, não
reclamaram da vida nova. Foram bem acolhidos, cada um desempenhando o papel que
lhes fora destinado. Porém como nem tudo na vida acaba em festa, o mundo girou,
e girou, e girou, e assim passaram-se semanas, meses, e os donos, ao lerem o
prazo de validade de seus produtos comprados naquela fria tarde de inverno,
viram-se obrigados a jogá-los fora, para servirem talvez, aos urubus do aterro
sanitário.
E assim, cumprindo suas tão
infelizes trajetórias no planeta azul, os homens e mulheres viram-se em meio a
outros de mesma espécie que também tiveram seus prazos de validade vencidos. Às
vezes é preciso ser ‘coisa’ para dar mais valor às ‘coisas’.
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